euventura

Você é único!

Cada época conta uma mentira lisonjeira ao seu povo. A nossa diz: “você é único.”

É uma boa história — vende esperança aos ansiosos, consolo aos perdidos e autoajuda aos medíocres. Promete dignidade sem conquista, validação sem esforço. Mas essa “singularidade”, tal como é vendida hoje, é um sedativo: embala o ego e adormece a vontade de ser excepcional, convencendo-nos de que já o somos.

A biologia não conhece o conceito de “único”. Ela opera em variação. Nós, humanos, somos iterações — versões ligeiramente modificadas de um mesmo design. Desejo, medo, fome, amor: os mesmos códigos rodando há milênios, reescritos em novos corpos. O rosto humano muda, mas o olhar é sempre o mesmo — o da persistência. Cada romance, rebelião ou vingança é uma variação antiga em uma nova pele.

A evolução não é artista — é engenheira. Não busca beleza, busca eficiência. O floco de neve acredita ser único, mas a tempestade não se importa.

Chamemos isso de “A Repetição Psicológica.” Carl Jung viu o que poucos veem: o “eu” é uma colagem de arquétipos — o herói, a mãe, o trapaceiro, a sombra. Vivemos mitos antigos, apenas com figurinos novos. O fundador de startup revive Prometeu; o influenciador, Narciso; o rebelde, Ícaro com Wi-Fi. Nada é novo — só mais alto, mais rápido, mais visível.

Nossos sonhos e medos são ecos antigos. A mente se acredita única porque só enxerga o próprio fragmento — não o arquivo inteiro da espécie. Cada um de nós é um nó que vibra num padrão que se repete.

Agora, o “Aviso Filosófico.” Os antigos desconfiavam dessa fome de ser especial. O Bhagavad Gita subordinava o eu ao dharma, à ordem maior. Os estóicos desprezavam a vaidade. Os budistas chamavam a individualidade de ilusão. Confúcio via sentido não na singularidade, mas na harmonia dos papéis — pai, filho, governante, cidadão. Para eles, querer ser único não era iluminação — era confusão.

Antigamente, a individualidade era função, não identidade. O “eu” existia como parte de algo maior — família, cidade, cosmos. O significado nascia da participação, não da distinção.

Mas chegou a Indústria do Conforto. A modernidade virou o espelho e declarou o eu soberano. “Seja você mesmo.” “Você é especial.” “Siga sua paixão.” Slogans lapidados por marketing e terapia até soarem como mandamentos. O que se vende como libertação é, na verdade, sedação. Quando a singularidade é um direito de nascimento, a excelência se torna opcional.

Essa indústria prospera mantendo as pessoas confortavelmente medianas — e convincentemente extraordinárias. As redes sociais aperfeiçoaram a ilusão: bilhões de vidas intercambiáveis, cada uma gritando por atenção sob a bandeira da individualidade. O algoritmo não busca originalidade — busca previsibilidade. É a conformidade disfarçada de expressão.

Podemos chamar de “A Repetição Sociológica.” Os papéis mudam, as necessidades não: poder, pertença, reconhecimento, transcendência. Reis e CEOs performam o mesmo rito de hierarquia; ascetas e minimalistas, o mesmo ritual de renúncia. Civilizações trocam de estética, mas mantêm o mesmo sistema operacional. A história é uma sala de espelhos — e cada geração jura ser diferente enquanto apenas cita a anterior.

Se o ser humano não é único, o que pode ser? Cru.

A raridade não se herda, constrói-se. Pela profundidade, não pela diferença. Pela maestria, não pela novidade. O raro não é o que se destaca — é o que se aprofunda.

O artesão, o pensador, o guerreiro — não buscam singularidade. Buscam refinamento. E, ao fazê-lo, tornam-se irrepetíveis — não por design, mas por consequência.

As civilizações antigas viam o eu como ponte entre o que veio antes e o que virá depois. O homem moderno, obcecado em ser único, cortou essa ponte. Confunde ser visto com ser significativo. Mas visibilidade não é imortalidade. O que perdura é o que se integra — o que contribui para a arquitetura contínua do pensamento e da ação.

Rejeitar a singularidade não é negar a individualidade. É lembrar que o eu não é monumento — é fluxo. Um processo que carrega mentes, genes e memórias de milênios. A tarefa não é se separar, mas continuar.